HISTÓRIAS DE ANTIGAMENTE - CRÔNICAS

TIA THEREZA E SEU AMOR “INCESTUOSO”

Uma das filhas de meu bisavô Domiciano Faustino da Silva com sua terceira esposa Anna Rosa foi a tia Thereza, nascida aos 31/12/1926 em Capivary, atual distrito de Gardênia, onde foi batizada aos 26/05/1927, tendo como padrinhos José Luiz Queiróz e Benedicta Rosa.
No passado, era comum o casamento entre pessoas da mesma família, principalmente entre primos. Contudo, as relações maritais entre pessoas mais próximas, como irmãos, meio-irmãos, tios e sobrinhos, nunca foram bem vistas pelas famílias tradicionais e pela sociedade da época.
Mesmo assim, em plena década de 1940, tia Thereza decidiu enfrentar a tudo e a todos, para viver, intensamente, seu amor com o sobrinho Joaquim Faustino da Silva, filho de seu irmão Benedito Faustino da Silva.


Está certo que isso não era nenhuma novidade na família, uma vez que um dos tios de Thereza, o Fabiano José de Andrade (irmão de meu bisavô Domiciano), também havia se casado, muitos anos antes, em 1893, com sua sobrinha Adelaide Thereza de Jesus. Mas, certo também é que este fato não amenizou de forma alguma o preconceito de muitos familiares e conhecidos, que apontavam a pobre tia Thereza como uma “pecadora”.
Da relação de tia Thereza com seu sobrinho Joaquim Faustino, nasceu o menino Onofre, que, infelizmente, não pode conviver muito tempo com sua mãe. De acordo com relatos orais, após tomar uma chuva bem forte, tia Thereza precisou tomar uma injeção, por meio da qual adquiriu tétano, que lhe levou em pouco tempo a óbito.
Sua história nunca foi muito comentada entre família. Eu mesmo, só vim saber a respeito há pouco tempo, através do relato de uma outra tia-avó, de 92 anos, que me contou esta e algumas outras histórias de família (ainda mais sigilosas), pouco antes de falecer.

(Paulo Fernando Zaganin Rosa, agosto/2017)



TIA MARIA ROSA E OS FILHOS SIAMESES

Uma outra filha de meu bisavô Domiciano Faustino da Silva, com sua terceira esposa Anna Rosa, chamava-se Maria Rosa, nascida em Maracaí aos 14/11/1923, onde foi batizada aos 13/01/1924, tendo como padrinhos João Theodoro de Souza e Maria Rosa de Jesus. 

Foi amasiada com José Candido Teixeira, vulgo Zezinho Candido, filho de Manoel Candido Teixeira e Maria Candida. O casal morava na Água do Engano, em Iepê, na propriedade do Sr. Veríssimo Castilho e de D. Luíza Naitzel. 

Segundo relatos, Zezinho maltratava Maria, frequentava festas e bailes, deixando a esposa sozinha em casa. No início de 1941, Maria ficou grávida e mal sabia as consequências que traria essa gravidez. Ela teve uma gestação difícil e, no final da tarde do dia 27/09/1941, quando foi dar a luz, passou por um dos momentos mais dolorosos de sua breve vida. Como tinha se tratado de uma gravidez complicada, chamaram duas parteiras para a ocasião, uma delas D. Maria Rosária, parteira muito experiente. Porém, as duas parteiras logo notaram que havia algo errado e não conseguiam de jeito algum fazer com que Maria desse a luz. Trataram logo de chamar uma terceira parteira, mas o chamado também foi inútil. Por fim, recorreram ao Sr. Jorge Bassil Dower, farmacêutico local, que fazia papel de “médico” em Iepê naquele tempo. Depois de muita dor, choro e sofrimento, num parto de horas, que durou a noite inteira e quase pôs fim naquele momento à vida de Maria, descobriram finalmente às 10h00 da manhã do dia 28/09/1941, quando ela conseguiu finalmente dar a luz, o que causara tanta dificuldade para que o parto fosse realizado: tratava-se de dois meninos gêmeos, unidos pela barriga, que nasceram já sem vida. 
De acordo com o relato de pessoas que viram esses gêmeos siameses (denominados cientificamente xipófagos ou xifópagos), parecia que os dois estavam abraçados, em posição de dança. A notícia se espalhou rápido, pois o fato era muito incomum na época. Todos comentavam se tratar de castigo ao pai dos bebes, Zezinho Candido, que deixara várias vezes a esposa grávida e doente em casa, para frequentar os bailes da região. O Sr. Jorge Dower fotografou os bebes e, depois, os gêmeos foram sepultados no cemitério de Iepê. O próprio farmacêutico declarou a morte dos bebes no Cartório local no dia 29/09/1941. 


Nos dias que se seguiram Maria sofreu tanto quanto durante o parto. Ficou num estado deplorável, sem poder se levantar da cama. Para se locomover tinha que ser carregada em cima de uma rede ou lençol. Seu amásio Zezinho Candido não lhe dava atenção, não se importava em levá-la ao médico para que tivesse o devido cuidado e, para piorar, continuava deixando-a sozinha, para viver sua vida boêmia. Maria não tinha nenhuma figura masculina para cuidar dela. Seu pai Domiciano Faustino, havia morrido no ano anterior. Sua mãe Ana Rosa não tinha como cuidar sozinha da filha. Por fim, às 10h00 do dia 24/10/1941 o inevitável acabou acontecendo, Maria finalmente descansou de seu sofrimento e foi encontrar-se com seus filinhos gêmeos.

                                                                         (Paulo Fernando Zaganin Rosa, agosto/2017)




TIO EMÍLIO, UM CASO DE SUICÍDIO NA FAMÍLIA

Tio Emílio Zaganin Netto nasceu no dia 30/12/1914 em Tambaú/SP. Era filho de meus bisavós, os italianos João Zaganin e Rita Bozzi. Em 1924, tio Emilio iniciou os estudos em Santa Cruz da Estrela/SP. Contudo, desde muito pequeno já ajudava seu pai e seus irmãos na lavoura do café, no sítio em que residiam em Tambaú.
Em 1928, tio Emílio transferiu-se, juntamente com toda sua família, para Iepê/SP, onde seu pai havia comprado um sítio de 15 alqueires do Sr. Francisco Bertholdo Vieira, na Água dos Patinhos. Nesse período, começaram a aparecer os sintomas da doença que o acompanhou até o fim de sua vida, um forte reumatismo nos ossos.
Apesar da doença que muito o incomodava, tio Emílio nunca reclamava. Trabalhava com a família na lavoura e, nas horas vagas, como marceneiro. Até hoje tem um banco de madeira, na casa de meus avós, feito por ele.
Tio Emílio gostava muito de música e sempre teve vontade de aprender a tocar violão. Em 1933, seu irmão Antonio (meu avô) presenteou-lhe com um violão e ele rapidamente aprendeu as primeiras notas, sendo que sua marchinha preferida era: “Hei, São Paulo! São Paulo da garoa, São Paulo terra boa...”
Em 1935 após vários tratamentos, tio Emílio passou por uma cirurgia na perna esquerda, na qual foi preciso retirar um osso na parte inferior. A cirurgia foi realizada em São Paulo e ele ficou mais de um mês sobre os cuidados do Dr. Sebastião Almeida Penteado.
O tempo foi passando e tio Emílio sentia-se muito atormentado pelas dores e, principalmente, por imaginar que estava dando muito trabalho e gastos à família. Embora tentasse disfarçar, deixou de ser um jovem alegre e estrovertido, passando a ser calado e triste.
No dia 23 de abril de 1938, certamente depois de muita reflexão, tio Emílio arreou o seu cavalo chamado “Trovão” e, em seguida, escondeu dentro da calça uma garrucha, de pequeno porte, que pertencera a seu pai. Por volta de 11 horas, ele ajoelhou-se diante de um quadro do movimento “Apostolado da Oração”, do qual fazia parte, fez o sinal da cruz e saiu em direção à vila (forma como chamavam a cidade naquela época).
Ao chegar na entrada da vila, parou diante de um grande pé de figueira que ficava na chácara do Sr. João Zago – onde hoje se localiza a residência do Sr. Natalino Zago. Ficou debruçado durante algum tempo sobre o cavalo – com certeza para refletir mais um pouco sobre aquilo que pretendia fazer. Exatamente ao meio-dia, quando não havia ninguém na estrada, dobrou, com a ponta da garrucha, a aba de seu chapéu preto sobre o ouvido e apertou o gatilho.


Esta primeira perda na família, ainda mais de uma forma tão trágica, quase enlouqueceu meu avô e seus irmãos. Segundo alguns relatos, por vários anos meu avô, na hora das refeições, olhava pela janela da casa e gritava: “Mílio, a comida tá pronta, vem comer”. Uma de suas irmãs, a Felista, precisou passar uns tempos na casa dos parentes em Tambaú para amenizar o sofrimento. Ela costurava camisas para seus irmãos e, mesmo após a morte de tio Emílio, continuou fazendo camisas para ele.
Vale aqui dizer, que Emilio não foi o único a tirar a própria vida. Outros dois irmãos de meu bisavô João Zaganin, também tiveram o mesmo triste destino.

(Paulo Fernando Zaganin Rosa, agosto/2017)


DOIS ANTONIOS

Antonio era o nome de meu avô. Antonio era também o nome de um personagem que povoou o imaginário de meu avô nos últimos anos de sua vida.
Filho de imigrantes italianos, vô Toni – era assim que o chamávamos –, nasceu em Tambaú, cidade do interior paulista que ficou bastante conhecida, no Brasil e no exterior, pela presença do Padre Donizetti Tavares de Lima, a quem muitas curas foram atribuídas, especialmente, na década de 1950, dando-lhe a fama de milagreiro. Vô Toni, que fora coroinha do Padre Donizetti, contava que, certa vez, durante uma forte chuva que caía sobre Tambaú, ele e outros meninos se abrigaram debaixo da torre da Matriz. Inesperadamente, o Padre saiu de dentro da igreja e indagou-os porque estavam ali. Eles explicaram que estavam se escondendo da chuva que, de acordo com meu avô, continuava a “despejar” sobre a cidade. Então o Padre exclamou: “Chuva... que chuva?!”, e quando colocou os pés para fora da torre a chuva cessou completamente.
Em 1928, meu avô partiu com os pais e os nove irmãos para o recém-formado distrito de Iepê, onde permaneceu até o fim da vida. Contudo, nunca deixou de retornar à sua terra natal. Em uma dessas ocasiões, no final da década de 1990, tive a oportunidade de acompanhá-lo. Era minha primeira vez em Tambaú. Fiquei encantado com a hospitalidade da vasta parentela de meu avô. Um de seus primos, o Joanim, fazendo-se de surpreso ao rever meu avô, disse assim a ele: “mah vá, mah vá, porquero mio... cê inda tá vivo Toni?”. E meu avô, fazendo-se de indignado, assim respondeu: “mah axô que io tinha murido, infelitche?!”. Em seguida, os dois caíram na risada e se abraçaram longamente. Juntos, meu avô e seus primos pareciam os mesmos meninos dos tempos do Padre Donizetti.
O novo sítio da família, em Iepê, possuía oito mil pés de café e um dos primeiros engenhos de açúcar construído na região. A nova casa era de madeira, chão de terra batida e coberta de tabuinha pequenos blocos de tábua, cortados em forma retangular, que eram pregados em uma armação de madeira – um tipo de construção muito utilizado na época. Vô Toni contava com orgulho que, em sua primeira caça na Água dos Patinhos, abateu, com uma cartucheira calibre 28, uma onça pintada, da qual, até hoje, seu filho Moisés carrega um dente no cordão do pescoço.
No final da década de 1930, Emílio, um dos irmãos de meu avô, que tinha apenas 22 anos, suicidou-se com um tiro de garrucha no ouvido. Esta primeira perda na família, ainda mais de uma forma tão brutal, quase enlouqueceu meu avô e seus irmãos. Segundo alguns relatos, por vários anos meu avô, na hora das refeições, olhava pela janela da casa e gritava: “Mílio, a comida tá pronta, vem comer”. Uma de suas irmãs, a Felista, precisou passar uns tempos na casa dos parentes em Tambaú para amenizar o sofrimento. Ela costurava camisas para seus irmãos e, mesmo após a morte do Emílio, continuou fazendo camisas para ele.
Nos anos seguintes, faleceram os pais do vô Toni, João e Rita, e duas de suas irmãs, a Regina e a Joana. Esta última era solteira e sofria de problemas cardíacos. Caiu morta enquanto atravessava uma cerca. De acordo com meu avô, semanas antes de sua morte, Joana variava enquanto dormia, chamando, em italiano, por Deus e por sua mãe: “Dio, mamma! Dio, mamma!”. Ele contava também que, certa vez, Joana saiu sozinha de casa calçando um tamanco de couro que ganhara de sua mãe. Nessa ocasião, enquanto ela caminhava, o tamanco batia na sola de seu pé e, o barulho provocado, causava a impressão de que alguém a seguia. À medida que acelerava os passos, o som do tamanco aumentava, fazendo-a correr, apavorada, imaginando que estava sendo perseguida.
Na década de 1940, durante uma colheita de café, meu avô conheceu minha avó Gilda, capixaba e filha de imigrantes italianos, que chegara, anos antes, com sua família a Iepê. O amor deles, nascido em meio àquele cafezal, deu muitos frutos. Tiveram, juntos, nove filhos e ficaram casados por 56 anos, até que a morte de meu avô os separou.


Das muitas histórias contadas por vô Toni, existia uma que ele mais parecia acreditar e que não cansava de repetir nos últimos anos de sua vida. Segundo ele, contava seu pai, que nas proximidades em que morava na Itália, vivia um homem de nome Antonio, que ficou conhecido em toda a região. Certo dia, enquanto o tal homem almoçava, engasgou-se com torresmo de porco e caiu morto sobre a mesa. O corpo do falecido foi velado no resto da tarde e durante a noite. Na manhã seguinte, durante o enterro, ouviu-se um forte ruído: o defunto batia freneticamente na tampa do caixão. Foi uma gritaria só e, dos presentes, restou apenas o coveiro que, com o auxílio de uma pá, abriu o caixão. De volta à casa, Antonio contou à família que esteve no purgatório, onde encontrou-se com um compadre que não via há alguns anos. Tempos depois, souberam que o tal compadre tinha mesmo morrido e, todos, passaram então a acreditar que Antonio havia, de fato, retornado da morte. Ele passou a ser conhecido como “Antonio Morto”, viveu ainda cinco anos e foi enterrado no mesmo caixão, que conservou guardado debaixo da cama.
Acredito que esta história era tão importante para meu avô, porque trazia em si a referência a um plano espiritual após esta vida. Da passagem do vô Toni para este outro plano, ninguém melhor que eu poderia narrá-la, pois Deus me escolheu para estar com ele naquele dia. Ele estava internado no Hospital de Rancharia, recuperando-se de uma cirurgia ocorrida em razão de uma fratura no fêmur. Fui, bem cedinho, para passar o dia com ele. De manhã, rezamos juntos o terço e no almoço ele se alimentou muito bem. Durante a tarde, reli para ele as histórias de nossa família, escritas por mim a partir de seus relatos. Seu semblante não conseguia esconder a emoção sentida ao ouvir o registro de todas aquelas histórias que ele sempre teve prazer em contar. Ao anoitecer, meu avô dormia serenamente, quando observei que sua respiração estava lenta. Chamei uma enfermeira e, enquanto ela foi informar a médica plantonista, voltei ao quarto. Aproximei-me do leito onde meu avô estava, toquei em seu braço e, neste momento, ele deu o seu último suspiro. Coloquei, imediatamente, o terço em sua mão e pude sentir muito forte a presença da Virgem Maria que veio ao seu encontro para guiá-lo até Jesus.
Mesmo após tantos anos, algumas recordações sobre meu avô são ainda muito nítidas... Todas as vezes que lhe pedíamos a benção: “Bença, vô!”, ele respondia: “Deus te abençoe!” e continuava a segurar firme e a balançar nossa mão. Para prosseguir com o “faz de conta” de que éramos nós que não queríamos soltar sua mão, ele ficava repetindo: “Larga minha mão! Larga minha mão!”. 
Como todo “bom italiano” que se preze, meu avô “falava com as mãos”. Gesticulava e tocava na gente o tempo todo enquanto conversava. Era inevitável não levar também alguns respingos de saliva. Depois de pedir a bênção, perguntávamos: “Tá bom vô?” e ele sempre respondia: “Bão pra fazer sabão!”.
Assim como no caso do “Antonio Morto”, cuja história continuou sendo relembrada por longos anos, a trajetória de meu avô Antonio permanece ainda bem viva na memória de todos aqueles que o conheceram. De meu avô restam os exemplos, as boas lembranças e, principalmente, o mesmo orgulho que ele tinha de carregar nas veias um pouco de sangue italiano.

(Paulo Fernando Zaganin Rosa, 2015)




VÓ MARIA E EU

E então minha avó entrou; e, imediatamente, com o relaxar de meu coração apertado, abriram-se espaços infinitos. (Marcel Proust)


Não conheci vó Maria.
Dela trago o segundo nome, os cabelos pretos e um olhar morteiro, herança de seus antepassados indígenas. Dela herdamos as “filosofias”, ludicamente passadas de geração a geração, em forma de parábolas hilárias, que ela jurava serem autênticas. Imagino que, com um sorriso gostoso, admitisse aos íntimos acrescentar-lhes umas “pitadinhas de floreios”.
O fato é que sua competência em usar histórias para transmitir opiniões e padronizar comportamentos – à la Miss Marple – não se perderam no tempo. Ao contrário, meu filho de três anos sabe o que quero dizer quando ouve: “eh, Florisvaldinho!” ou “Mariquinha Totonha”...
Vó Maria é a síntese da mulher do interior paulista no início do século XX. Teve pouco acesso à escola, mas, como religiosa e boa presbiteriana, foi professora competentíssima da escola dominical. Era cozinheira de mão cheia, trabalhadora e alegre, apesar da vida dura que levavam as mulheres daquela época. Não existiam, pelo interior do Estado de São Paulo, luz elétrica, água encanada, médicos e muito menos, controle de natalidade. Uma irmã de vó Maria enchia o lombo do cavalo com seus inúmeros filhos e chegava a chorar, quando entrava na igreja da pequena cidade de Iepê. O presente que ganhavam essas mulheres, ao saírem das dietas dos partos, era um porco para limpar e preparar.


Mas não perdiam a alegria, uma alegria genuína, como os caboclos sertanejos conseguem ter. Ao mesmo tempo em que choravam, riam de chacoalhar com os “causos” contados. Era um tempo em que a grande diversão eram as conversas, até imitavam pessoas nessas rodinhas. Foi assim que as crianças escutaram as histórias, aprenderam a graça e “o moral” – quando havia – de cada uma e não as deixaram morrer.
Vó Maria teve três filhas. Perdeu um filho e morreu, em 1964, de câncer uterino; segundo os médicos, devido às sequelas das complicações do parto do último filho.
A maneira como perdeu esse filho, apesar da tristeza do fato, não deixa de ter uma nota de cômico. Explico-me. Vó Maria esperava o quarto filho, já em estado avançado de gravidez. Certo dia, cuidando da casa, ouviu um barulho horrendo, como se um touro bravo tivesse escapado e fosse invadir o quintal. Começou a tremer e a criança parou de mexer em sua barriga. O barulho recomeçou e, dali a pouco, chega meu avô empunhando o trombone que estava aprendendo a tocar. Estava resolvido o enigma do touro bravo. Meu avô, porém, nunca mais tocou trombone.
O bebê nasceu morto. Um parto difícil, assistido apenas por uma parteira da região. Minha mãe conta que as crianças foram brincando “de pique” no enterro do anjinho. Vó Maria chorou alto por vários dias, pois, como já disse, ria e chorava com a mesma facilidade, como se lavasse a alma. E, por isso, nunca teve rancores, mágoas, tristezas ou traumas profundos.
Vó Maria morreu assim, tranquila, fingindo não saber da sua doença, para poupar as filhas; contando suas histórias e filosofando; preparando as filhas - principalmente a caçula, minha mãe – para a vida sem ela; pedindo com humor que a enterrassem onde morresse (ela estava em Botucatu, na casa da filha mais velha), pois achava um absurdo defunto “viajar”.
A enfermeira que a acompanhou nos últimos dias divertia-se com suas histórias, seus pedidos para ficar com uma aparência saudável e com sua preocupação com as olheiras das filhas. Vó Maria fez um bom trabalho, até nos dias que antecederam sua morte. Coincidentemente, meu irmão nasceu cinco anos depois no mesmo dia em que ela morreu, 23 de setembro, e isso nunca foi motivo de choros e tragédias. Ao contrário, foi uma oportunidade a mais de lembrar seus “causos” e o amor que ela teria por esses netos que nunca chegou a conhecer. Como diz minha mãe, ela “trincaria” pelos netos e bisnetos.

Tenho algumas fotos de vó Maria. Assim como seus traços marcam meu rosto e, acentuadamente, os olhos de meu filho, mais ainda nos marcam suas “filosofias”, a crença em Deus e na vida. Pois ela vale a pena e, se rirmos e chorarmos, nunca mancharemos a alma.

(Nê Sant'Anna)


Leia as outras crônicas no livro “Filosofias de Vó Maria: Crônicas de um Cotidiano Caboclo”, disponível no link abaixo:









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